Articles and Translations

De Volta a Deus (1182–1184)

Capítulo 5 de O Compassivo Ilimitado – A vida e o pensámento espiritual de Ibn ‘Arabi

Stephen Hirtenstein

Stephen Hirtenstein has been editor of the Journal of the Muhyiddin Ibn Arabi Society since its inception in 1982, and is a co-founder of Anqa Publishing [/].

He read History at King’s College, Cambridge, and then studied at the Beshara School of Intensive Esoteric Education in Gloucestershire and Scotland. After a teaching career, he began writing and giving talks on Ibn Arabi’s thought at conferences across the world.

In addition to lecturing and writing, he organises and leads tours "in the footsteps of Ibn Arabi".

He currently works as a Senior Editor for the Institute of Ismaili Studies in London, and lives near Oxford.

 

Articles by Stephen Hirtenstein

The Image of Guidance – Sadr al-Din al-Qunawi as Hadith Commentator

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“I entrust to you a bequest” – Ibn Sawdakin | Translation

Muhyiddin Ibn Arabi: The Treasure of Compassion

Selected Major Works of Ibn Arabi

Seleção das maiores obras de Ibn Arabi (Portuguese)

De Volta a Deus (Ibn Arabī 1182–1184) – Capítulo 5 de O Compassivo Ilimitado (Portuguese)

Some Preliminary Notes on al-Diwan al-kabir

The Brotherhood of Milk – Perspectives of Knowledge in the Adamic Clay

“O Marvel!” – A Paradigm Shift towards Integration

The Mystic’s Kaaba – The Cubic Wisdom of the Heart According to Ibn Arabi

Physical Sustenance in Sufi Literature: A Case-study of a Treatise by Abd Allah al-Busnawi | with Hülya Küçük

Malatyan Soil, Akbarian Fruit: From Ibn Arabi to Nyazi Misri

The Prayer of Blessing [upon the Light of Muhammad] by Abd al-Aziz al-Mahdawi | with Pablo Beneito| Part 1, the Introduction

The Prayer of Blessing [upon the Light of Muhammad] by Abd al-Aziz al-Mahdawi | with Pablo Beneito| Part 2, the Translation

Sadr al-Din al-Qunawi’s al-Nusus | with Hülya Küçük

Names and Titles of Ibn [al-]‘Arabi

Kitâb al-fâna' fi-l mushâhadah, by Ibn 'Arabi | with Layla Shamash

The Great Dīwān and its offspring: The collection and dispersion of Ibn 'Arabī's poetry | with Julian Cook

The library list of Ṣadr al-Dīn al-Qūnawī | with Julian Cook

Malik MS 4263: A Manuscript Case-study

 

Translations by Stephen Hirtenstein

Kitâb al-fâna’ fi-l mushâhadah by Ibn ‘Arabi

 

Podcasts and Videos by Stephen Hirtenstein

The Healer of Wounds: Interpreting Human Existence in the Light of Alchemy and Ascension

Reviving the Dead: Ibn Arabi as the Heir to Jesus

Introduction to the “Light & Knowledge” Conference

The Mystic’s Kaaba – The Wisdom of the Heart According to Ibn Arabi

“O Marvel!” – A Paradigm Shift towards Integration

Spiritual Life, Living Spirit – Ibn Arabi’s Meeting with Jesus and John

The Secrets of Voyaging

É Ele que envia os ventos carregados de boas novas antes da Sua Misericórdia, até que, ao estarem carregados de densas nuvens, Dirigimo-las a uma terra morta e sobre ela fazemos cair água. Assim Nós ressuscitamos os mortos, lembrar-te-ás, talvez. A boa terra produz vegetação com a permissão de Deus.[1]

 

Renúncia, aceitação, satisfação e paciência são quatro realidades essenciais. Aquele que não as tem dentro de si não faz parte das pessoas do caminho de Deus. A realidade essencial da renúncia é devolver a escolha para Deus, fazendo com que sua própria escolha desapareça. Aceitar é submeter-se com obediência ao que Ele escolheu para você: felicidade ou infelicidade, sendo ou não de seu gosto. Fazer alguma coisa com prazer é ter satisfação, um dos estados de aceitação. A realidade essencial da paciência é impedir a alma de reclamar: aquele que se queixa deixou de ser paciente; aquele que lamenta reclama.[2]

Pelo que se pode constatar nas obras de Ibn ‘Arabī que sobreviveram, ele não nos fala muito sobre sua iluminação. Porém há muitas pistas que indicam os fatores envolvidos e que apontam para uma repentina e dramática mudança. Fica claro que foi um caso do que é conhecido como “o momento do favor”, o momento em que o desejo ardente de uma pessoa coincide totalmente com a abertura da porta para a visão da Realidade. Como no caso do Profeta Muhammad ou do Buda, é algo que parece acontecer rapidamente, embora, na realidade, não haja envolvimento de tempo, e a vida da pessoa depois disso é transformada.

Uma característica notável da iluminação de Ibn ‘Arabī foi a falta de qualquer preparação formal ou de estudo. Ele era um jovem sem qualquer treino específico ou disciplina, e parece que não conhecia nenhum mestre espiritual naquele momento. Entretanto, é necessário ter cuidado ao julgar se a pessoa está pronta em termos de ações de purificação ou de preparação. É uma transformação que retira a pessoa das seqüências temporais da vida normal.

Ibn ‘Arabī nunca anula a possibilidade, por mais rara que seja, de que as pessoas possam ser encaminhadas diretamente a Deus sem qualquer condição prévia. Todo o poder pertence a Ele e a iluminação é uma ação inteiramente Divina. Porém procurar ou esperar por um presente tão Divino tornaria esta possibilidade inatingível – nossa limitada compreensão não consegue apreender esta condição ou fazê-la acontecer. Assim sendo, Ibn ‘Arabī recomenda àqueles que demonstram uma inclinação para o caminho espiritual que, primeiramente, purifiquem seu caráter e que se submetam a um treinamento espiritual. O solo precisa ser devidamente preparado para que a semente dê fruto.

Numa idade relativamente jovem, talvez nos seus 16 anos (embora não se possa ter certeza da data exata), Ibn ‘Arabī fez um retiro. O que aparentemente causou este repentino desejo de voltar-se para Deus, ele próprio não menciona em suas obras, mas não se pode duvidar da intensidade avassaladora desse desejo. Segundo uma história escrita mais de 150 anos depois de sua morte,[3] parece que Ibn ‘Arabī estava em um jantar com amigos e como era de costume na Andaluzia, o vinho foi servido depois da refeição. Ao levar o copo de vinho aos lábios ouviu uma voz que dizia: “Ó Muhammad, não foi para isso que foste criado!” Consternado com esta declaração tão explícita, fugiu para um cemitério que ficava fora da cidade de Sevilha, onde encontrou um túmulo em ruínas que tinha a aparência de uma gruta. Permaneceu recluso neste lugar por quatro dias, praticando a invocação (dhikr) e só se retirando nas horas de oração.

O segundo aspecto importante desse retiro é que se baseou em uma visão dos três grandes mestres espirituais da tradição ocidental: Jesus, Moisés e Muhammad. Pelo que conheço, esta tripla intervenção não tem paralelo entre outros místicos e prenuncia um dos mais importantes temas da obra de Ibn ‘Arabī: o significado singular de toda a tradição profética. Os três componentes dessa visão, exclusivamente fundidos, são um resumo do grande ensinamento semítico sobre o significado do monoteísmo, primeiramente articulado por Abraão.

Quando retornei para este Caminho, foi realizado através de uma visão onírica (mubashshira) sob a direção de Jesus, Moisés e Muhammad.[4]

A boa nova que estes três profetas trouxeram agiu como uma pancada de chuva sobre a terra ressecada, reavivando-a e liberando-a da constrição. Ibn ‘Arabī diz que isto lhe trouxe “as luzes da receptividade, da ação pura e do amor arrebatador”. Sobre Jesus ele escreve:

Tive muitos encontros com ele em visões e pelas suas mãos voltei-me a Deus. Ele orou por mim para que eu me firmasse na vida religiosa (dīn), tanto neste mundo como no outro e chamou-me de amado (habīb). Ordenou-me a prática da renúncia (zuhd) e do desapego (tajrīd).[5]

Estes dois princípios de renúncia e de desapego são, para Ibn ‘Arabī, as premissas e os pré-requisitos da vida espiritual, que é centrada em restituir as coisas para o seu lugar certo, e em não adquirir mais “bagagem”. Simplesmente renunciar a todos os bens e todas as possessões, tornando-se exteriormente pobre, seria uma interpretação totalmente equivocada – trazemos conosco a idéia de posse e propriedade, de tal forma que acreditamos ser os donos das coisas. Nossa “bagagem” não é assunto de aquisição física, mas de nossa atitude em relação a ela. Ser exteriormente rico ou pobre não muda em princípio nossa percepção de possuir alguma coisa. A verdadeira mudança ocorre quando compreendemos que o que achamos que possuímos, na verdade não nos pertence, nem mesmo a própria existência. Então é possível, como Ibn ‘Arabī explicou a seu discípulo al-Habashī, “devolver a escolha para Deus, fazendo com que a escolha própria desapareça”. Renúncia e desapego são realmente descrições dessa realização, que controlam qualquer tendência da alma a assumir domínio. Somos requisitados a renunciar à ilusão de nossa existência separada, da nossa aparente habilidade de escolher, aos nossos poderes limitados e também nos desapegarmos de tais considerações como um todo. Só então podemos permanecer em nossa condição original, que é a pura receptividade.

Cada coisa que aparentemente possuímos tem um certo direito: requer cuidado e isto coloca o dono numa posição servil em relação à coisa. A extensão destes direitos, se escolhermos assumi-los, diminui a pureza essencial de servidão a Deus somente. Para Ibn ‘Arabī, a estação de pura servidão significava um despojamento literal:

Desde que me encontrei nessa estação não possuo uma única coisa viva. Não, nem mesmo as roupas que uso, pois não uso nada a não ser que tenha permissão para usá-las. Sempre que obtenho alguma coisa, imediatamente livro-me dela, dando-a a alguém ou libertando-a, se puder ser libertada. Isto ficou claro para mim quando desejei realizar a servidão de pertencer exclusivamente a Deus.[6]

O extremo desta condição é também ilustrado na maravilhosa história de Salomão, que havia pedido o poder de alimentar a todas as criaturas, quando uma grande besta emergiu do mar e devorou tudo que tinha sido colocado em sua frente. Ficou claro para Salomão que ele sozinho nunca poderia satisfazer-lhe a fome e que somente Deus poderia prover em tal quantidade. A renúncia do servo ao poder e à escolha, permite a Deus trabalhar com mais perfeição. Um exemplo de fidelidade a essa condição de verdadeira pobreza e de servidão pode ser encontrado na oração atribuída a Salomão, no Alcorão, quando pede não por um específico favor Divino, mas simplesmente pela capacidade de gratidão pelo favor:

Meu Senhor concede-me o poder de ser grato por Tua Beneficência, com a qual favoreceste a mim e a meus pais, e que possa agir com retidão para agradar-Te, e admite-me, através de Tua Infinita Compaixão, entre Teus servos justos.[7]

Jesus, o modelo de perfeita renúncia e desapego, foi o primeiro mestre de Ibn ‘Arabī e há um extraordinário laço entre os dois, que aparece e reaparece por toda parte de suas obras. Isto não é um acidente e seu significado nunca pode ser enfatizado o suficiente, se pretendemos verdadeiramente apreciar a obra de Ibn ‘Arabī.

Ele foi meu primeiro mestre, por meio do qual retornei [a Deus]. Ele é imensamente bondoso para comigo e não se esquece de mim, nem mesmo por um instante.[8]

O segundo encontro em visão foi com Moisés, que lhe anunciou que receberia o conhecimento diretamente de Deus (‘ilm ladunī). Isto lembra a história alcorânica[9] em que Moisés encontra um dos servos especiais de Deus, conhecido na tradição islâmica como Khidr ou Khadir, “o Verde”. Khidr é para o islamismo o que Elias representa para os judeus: um mestre espiritual que opera no mundo invisível, além das restrições da vida normal, o eterno arquétipo da direta inspiração Divina. Habitualmente identificado a um dos oficiais de Alexandre, o Grande, que bebeu da fonte da vida, é descrito no Alcorão como aquele “ao qual Nós demos a Misericórdia e ao qual ensinamos o conhecimento diretamente de Nós”. Ele é associado àqueles que não têm mestres terrenos e é quem ajuda e ensina a todos aqueles que vão diretamente a Deus sem intermediários. Sua sabedoria é um curativo contra as tendências cobiçosas, gananciosas e corruptas da personalidade humana, e seu modo de instrução contrasta totalmente com as expectativas “mundanas” e pontos de vista que temos. Como veremos no Capítulo 7, Ibn ‘Arabī foi destinado a encontrá-lo três vezes, em circunstâncias extraordinárias. Receber conhecimento direto, do tipo que Khidr representa, é ser capaz de ir além do universo do pensamento especulativo, para a arena da experiência direta ou do gosto (dhawq), lugar onde o conhecimento dos segredos é concedido. [O nome dhawq significa literalmente gosto (do paladar). Assim como provamos a comida sem a intermediação da mente, assim o coração experimenta a revelação divina sem intermediário. É algo que pode ser desenvolvido e refinado. (N. E.)]

Se a pessoa, corretamente preparada, persiste no retiro espiritual e lembrança (dhikr), esvaziando o lugar [do coração] do pensamento reflexivo e permanecendo ali como um pobre mendigo que nada tem, à porta de seu Senhor, Deus, então, conceder-lhe-á e dar-lhe-á algo do conhecimento Dele, daqueles divinos segredos e grandiosas compreensões que conferiu a Seu servo Khidr.[10]

Ibn ‘Arabī ressalta que esse tipo de conhecimento é freqüentemente negado e rejeitado pelas pessoas no mundo e o distingue daquele adquirido pelo intelecto ou por um estado particular. Diz que este conhecimento está inteiramente além do estágio do intelecto e é particular aos profetas e santos.

A terceira figura foi o Profeta Muhammad, que apareceu para ele no contexto de guerra:

Eu me vi num sonho e estava num vasto espaço. Havia um grupo de homens armados que queriam me matar e não havia qualquer maneira de escapar. Então vi na minha frente uma colina sobre a qual o Enviado de Deus estava em pé observando tudo e, então, refugiei-me nele. Abriu os braços e abraçou-me ardentemente, dizendo: “Meu amado, agarra-te firmemente em mim e estarás seguro.” Olhei, então, para os meus agressores e verifiquei que não havia sobrado nenhum. Foi a partir desse momento que me dediquei ao estudo do Hadīth.[11]

Esse comando final é para que a pessoa use o Profeta como modelo, que é quem melhor exemplifica o equilíbrio perfeito da vida espiritual. Ele representa inteireza do conhecimento espiritual concedido por Deus e a fruição de todos os ensinamentos anteriores. O estudo dos ditados do Profeta (Hadīth), no qual Ibn ‘Arabī mergulhou a partir de 1182 (578) e que permaneceria sua paixão por toda a vida, era uma tentativa consciente de conhecer e emular o exemplo de Muhammad em todos os aspectos. Da mesma forma que Muhammad disse de si mesmo: “Fui mandado para completar as qualidades positivas (husn al-akhlāq)”, Ibn ‘Arabī disse de si mesmo que seu caráter foi formado em total conformidade com Deus, em cada estado, além de todas as considerações mundanas de louvor ou de censura. Como muitos outros místicos sufis, levou sempre a sério as palavras alcorânicas: “Se amas a Deus, segue-me, e Deus, então, te amará.”[12] Seguir o Profeta como modelo de um comportamento bom e belo leva diretamente a pessoa a ser amada por Deus.

Como conseqüência desse retiro e dos insights espirituais que lhe foram concedidos, duas coisas parecem ter acontecido: primeiramente, começou a estudar o Alcorão e o Hadīth com
vários mestres em Sevilha. Uma pessoa cuja influência foi indubitavelmente significante foi seu tio ‘Abdallāh, a quem pode ter dedicado sua leitura do Alcorão e quem talvez lhe tenha encorajado a realizar seu desejo de fazer retiro. É provável que sua morte talvez tenha ocorrido um ou dois anos antes de 1184:

[Meu tio] passava muito tempo em seu recinto de retiro com portas cerradas. Tinha um filho caprichoso, cujo comportamento tornara-se tão problemático para meu pai que este queria expulsá-lo de suas terras. Quando meu tio soube disso, chamou-me e disse: “Meu filho, vá dizer a meu irmão que deixe meu filho em paz, pois ele morrerá em breve e nós seremos aliviados. Viverei ainda 42 dias após sua morte e depois juntar-me-ei a ele. Seu pai, então, estará livre de nós dois.” Aconteceu justamente como ele havia dito.[13]

Em segundo lugar, seu pai enviou-o ao encontro do grande filósofo Ibn Rushd (Averróis, 1126-98), que descendia de uma família de grande proeminência em Córdoba. Ibn Rushd, de todas as grandes figuras da Espanha medieval, é talvez a mais conhecida na Europa, por ter reintroduzido as obras de Aristóteles no Ocidente. Escritor prolífico, escreveu comentários sobre todos os campos de investigação sobre os quais Aristóteles havia se debruçado – astronomia, meteorologia, medicina, biologia, ética, lógica –, sendo que estes comentários foram de uma enorme influência sobre os europeus, que por sua vez redescobriram Aristóteles. O “averroísmo” tornara-se uma cause célèbre nos círculos intelectuais de Paris, Nápoles e Oxford. Ibn Rushd é citado mais de quinhentas vezes por Tomás de Aquino (morto em 1274), cujo objetivo era mostrar que razão e revelação poderiam conviver lado a lado numa estrutura cristã. Para os árabes, Ibn Rushd era o modelo de aprendizagem. Humilde e sempre aberto para aquisição de um novo conhecimento, sabia mais sobre o pensamento dos antigos gregos do que qualquer um dos seus contemporâneos. Era uma figura conhecida nos círculos da corte: foi médico particular e conselheiro de dois sultões almôadas e, como seu pai e avô, também ocupou o cargo de qādī (chefe do supremo tribunal), tanto em Sevilha como em Córdoba. Também foi amigo do pai de Ibn ‘Arabī.

O célebre encontro entre Ibn Rushd e Ibn ‘Arabī – o idoso filósofo e o jovem místico – tem sido muito citado,[14] e com toda a razão, uma vez que demonstra a distinção da mente e do coração, coisa que as pessoas no Ocidente, em prejuízo próprio, têm ignorado. Essa conversa vem ecoando através dos tempos, como um desafio para todos os seres humanos:

Um dia fui a Córdoba para visitar o qādī Abū al-Walīd Ibn Rushd. Ele queria conhecer-me pessoalmente, pois estava perplexo com o que tinha ouvido a respeito do que Deus tinha me revelado em retiro. Assim, meu pai, que era um de seus amigos, mandou-me até ele com o pretexto de dar um recado qualquer, mas na verdade seu intuito era de que ele me conhecesse. Naquele tempo era ainda um menino imberbe. Quando entrei, levantou-se do seu lugar, veio até mim, saudando-me afetuosamente e com grande honra. Abraçou-me e disse-me: “Sim!”, ao que respondi: “Sim!” Ficou ainda mais satisfeito comigo, por tê-lo entendido. Então percebi o que lhe trouxera contentamento e disse-lhe: “Não!” Com isso a consternação tomou-o, sua face perdeu a cor e parecia duvidar de seus próprios pensamentos. Perguntou-me: “Que tipo de solução você encontrou por meio do desvelamento e da iluminação divina? É igual a que atingimos por meio do pensamento especulativo?” Respondi: “Sim – Não! Entre o Sim e o Não, os espíritos desprendem-se de suas matérias e os pescoços são separados de seus corpos.” Ibn Rushd empalideceu, começou a tremer e murmurou: “Não há força ou poder a não ser em Deus.” Ele sabia ao que eu me referira.

Um tempo depois, Ibn Rushd perguntou a meu pai sobre o encontro que tivera comigo, para saber o que meu pai pensava a meu respeito, e se era igual ou diferente do seu próprio ponto de vista. Ele era um dos mestres da reflexão e do pensamento filosófico. Agradeceu a Deus por ter-lhe concedido a graça de viver num tempo em que pôde conhecer alguém que tinha entrado ignorante num retiro espiritual, e saído dele tendo se desenvolvido de tal forma, sem aprendizado, estudo ou qualquer tipo de leitura. Ele declarou: “Eu mesmo havia dito que tal coisa era possível, mas nunca tinha conhecido alguém que o tivesse vivido. Louvado seja Deus que me permitiu viver no mesmo tempo de um desses mestres, um desses que descerram as trancas dos portões. Louvado seja Deus que me deu a graça de ver um deles com meus próprios olhos!”

Quis, então, encontrar-me novamente com ele. Deus o fez aparecer para mim numa visão, numa forma em que éramos separados por um fino véu. Eu o via através dele, mas ele não conseguia me ver ou saber minha posição e encontrava-se muito ocupado consigo mesmo para conseguir me ver. Eu pensei comigo: “Ele não é desejado para aquilo com o que estamos comprometidos.” Morreu no ano 595 em Marrakesh, sem que eu o tivesse visto outra vez.[15]

Embora a conversa “Sim – Não” esteja centrada em como compreender a ressurreição (se é uma questão do corpo ou somente da alma), outro ponto geral e fundamental destaca-se no encontro de Ibn Rushd com Ibn ‘Arabī: o abismo que separa as duas maneiras de indagação, a filosófica e a mística, entre a reflexão intelectual e o retiro espiritual. Fica claro que para Ibn ‘Arabī o caminho místico é mais completo e mais abrangente e envolve uma percepção mais profunda que o pensamento intelectual.

Depois de sua iluminação espiritual e do encontro com Ibn Rushd, parece que a decisão de Ibn ‘Arabī foi testada por um período que ele chama de “resfriamento” (fatra). “Este é o período de esfriamento que é bem conhecido no Caminho dos homens de Deus, é inevitável e acontece com todos aqueles que percorrem a Via.”[16] O entusiasmo inicial diminuiu e as ligações com o mundo recomeçaram a exercer suas influências sobre ele. Ainda tinha compromissos com a vida mundana e, como acontecera com seu pai, serviria também o exército do sultão almôada. Seria necessário um lembrete Divino para lançá-lo definitivamente para fora dos padrões aparentemente estabelecidos da vida.

Primeiramente teve uma visão em que ouviu os versos do Alcorão, citados no início deste capítulo: “É Ele que envia os ventos…”. Imediatamente compreendeu que eles se referiam à sua própria condição, fazendo-o lembrar-se de sua real orientação. O seguinte extrato, que descreve o episódio, também dá uma idéia bem clara de como foi dada a Ibn ‘Arabī a compreensão do significado do Alcorão:

Quando o estado de esfriamento apossou-se de mim e dominou-me, vi Deus numa visão e Ele recitou para mim estes versos: “É Ele que envia os ventos carregados de densas nuvens, dirigimo-las para uma terra morta e sobre ela fazemos cair água”,e em seguida o verso: “A boa terra produz vegetação pela permissão de Deus.” Então entendi que os versos eram dirigidos a mim e pensei comigo: “Ao recitá-los para mim Ele está anunciando o primeiro sucesso, pelo qual Deus guiou-me pelas mãos de Jesus, Moisés e Muhammad, que a paz esteja com todos eles.” Pois quando retornei à esta Via, foi por meio de uma visão num sonho, nas mãos de Jesus, Moisés e Muhammad. [Isto aconteceu] “antes de Sua Compaixão” – que era o zelo divino por mim –, “até que, ao estarem carregados de densas nuvens” – que era o sucesso que se seguiu –, “Nós o dirigimos para uma terra morta” – que era eu. Ele fez com que minha terra se tornasse viva depois de sua morte e isto foi demonstrado pelas luzes de receptividade, pela pura ação e pelo amor arrebatador que tomaram conta de mim. Então Ele disse: “Assim Nós ressuscitamos os mortos, lembrar-te-ás, talvez” – com isto Ele indica o que o profeta respondeu quando lhe perguntaram sobre a Ressurreição, em relação à congregação dos corpos: precisamente, que “Deus fará o céu chover, como o esperma do homem”.[17] Então Ele disse: “A boa terra produz vegetação com a permissão de seu Deus”, e isso nada mais é que conformidade, ouvir e obedecer por meio da purificação do lugar [de recepção], “enquanto aquilo que é pobre [terra], que está sendo dominado pela alma [inferior] e pela disposição natural, sendo realmente pura preocupação consigo mesmo, “não produz nada que preste”.[18]

O desenrolar final no processo de renúncia aconteceu em 1184, na Grande Mesquita em Córdoba.

A razão para minha retirada e rejeição do exército, bem como a de seguir esta Via [de Deus] e de minha inclinação a ela foi [a seguinte]: Saí em companhia de meu Senhor, o Comandante [almôada], Abū Bakr Yūsuf b. ‘Abd al-Mu’min b. ‘Alī, em direção à Grande Mesquita de Córdoba. E eu o vi curvando-se, prostrando-se e humildemente rebaixando-se em súplica a Deus. Então um pensamento repentino (khātir) mexeu comigo [de modo que] pensei: “Se este, o soberano dessas terras, é tão humildemente submisso e faz isso perante Deus, este mundo, então, não vale nada.” Assim o deixei naquele mesmo dia e não mais o vi.[19] Dali em diante, segui esta Via.[20]

Foi a partir dessa data, aproximadamente junho de 1184 (Safar 580), com apenas 18 anos, que Ibn ‘Arabī dedicou-se irrevogavelmente a uma vida de pobreza e de servidão, em total acordo com as instruções dadas por Jesus, Moisés e Muhammad.

Foi assim que deixei para trás tudo que me pertencia. Naquele tempo não tinha nenhum senhor [terrestre] a quem pudesse confiar meus negócios e a quem passar o que me pertencia. Então fui até meu pai e consultei-o sobre o que fazer: desfiz-me de tudo que possuía, sem pedir conselho a mais ninguém. Não havia retornado a Deus pelas mãos de um mestre, nem naquele tempo havia encontrado algum que estava no Caminho. Ao contrário, separei-me de meus pertences da mesma forma que um homem morto se separa de sua família e de tudo que possui. Quando consultei meu pai, pediu-me para ficar com o que era meu e a ele entreguei tudo.[21]

Daí em diante, somente Deus encarregar-se-ia dele e de seus negócios, e ele estava pronto para participar da extraordinária sabedoria dos mestres espirituais da Andaluzia e do Norte da África.

 

Capítulo 5 de O Compassivo Ilimitado – A vida e o pensámento espiritual de Ibn ‘Arabi, Stephen Hirtenstein, tradução Regina Araujo. Reprodução com a permissão da Editora Fissus Ltda., Rio de Janeiro, 2009.

© Stephen Hirstenstein, 1999, 2009

Annotations

[1] Alcorão 7:57-8.

[2] K.al-Inbah, JMIAS XV, p. 18.

[3] V. Durr al-thamīn fi manāqib al-Shaykb Muhyiddín, por al-Qāri’ al-Baghdādī (morto cm 1418) p. 22; Ouest, p. 36. Como Gerald Elmore destaca em "On the Road to Santarém" (JMIAS XXIV), há razões para se duvidar da au­tenticidade de alguns detalhes da história: por exemplo, é quase idêntico ao relato da conversão do príncipe-acético de Khurasan, Ibrāhim ibn Adham (morto no século VIII), que por sua vez foi copiado da lenda indiana do Príncipe Siddharta, o Buda. Por outro lado, vale considerar dois outros fa­tores: primeiramente, as ruínas mencionadas teriam muito provavelmente sido parte da antiga cidade românica, Itálica, localizada a uns cinco quilô­metros a oeste de Sevilha, que parece ter sido usada como um lugar de re­tiro. Em segundo lugar, as palavras da injunção Divina ("Não foi para isso que você foi criado") lembram, com certa estranheza, o seguinte incidente que Ibn ‘Arabī reconta no Rūh al-quds: "Logo depois de tê-lo encontrado [‘Abdallāh al-Khayyāt], eu tinha recebido inspirações sobre o Caminho, que eram desconhecidas por todos. Portanto, quando o vi na mesquita, queria parecer seu igual quanto à espiritualidade. Então, de repente, senti-me como uma fraude em sua presença. Ele me disse: ‘Sê diligente, pois abençoado é aquele que sabe para o que foi criado. ‘Então ele fez a oração da tarde comigo, tirou os sapatos, saudou-me e saiu… Nunca mais ouvi falar dele." (Ruh.p. 117; Sufis,p. 126.)

[4] Fut. IV: 172.

[5] Fut. II:49 e 12:123 (OY).

[6] Fut. I:196.

[7] Alcorão 27:19.

[8] Fut. III:341.

[9] V. Alcorão 18:60 e ss.

[10] Fut. I:31 e I:138 (OY). Trecho retirado da longa introdução do Futuhat, tendo algumas partes sido traduzidas por J. W. Morris, sob o título de "How to Study the Futūhāt t: Ibn ‘Arabī’s Own Advice", Commemorative Volume, p. 75.

[11] K. al-Mubashshirāt, p. 5.

[12] Alcorão 3:31.

[13] Rūh, p. 96; Sufis, p. 100.

[14] Ver, por exemplo, H. Corbin, Creative lmagination, pp. 41 e ss- baseei minha tradução na excelente versão realizada por Corbin. Na verdade, é di­fícil saber a data precisa desse encontro, mas é muito provável que tenha acontecido entre 1182 e 1184, depois de Ibn Rushd ter sido indicado médi­co pessoal de Abū Ya’qūb e ter-se tornado o principal qādī em Córdoba.

[15] Fut. I:153 e 2:372 (OY).

[16] Fut. IV:172.

[17] Hadith mencionado no Sahih de Muslim, 110 e 116, com variante transmitida por Ibn Masūd.

[18] Fut. IV:172.

[19] O sultão morreu no dia 29 de julho de 1184, depois de um desastroso cerco a Santarém, uma cidade portuguesa, que durou um mês.

[20] Dito por Ibn ‘Arabī a Ibn al-Sha"ār (1197-1256), que o encontrou em Alepo em 1237. Para uma tradução e uma explicação completas, ver G. Elmore, "On the Road".

[21] Fut. 11:548.